Sob a Neve, os Mortos Andam - Capítulo 4
A névoa da manhã se dissipava devagar enquanto Kael cavalga ao lado do pai.
O som das patas contra a terra molhada era ritmado, constante.
O vento batia forte, fazendo as capas ondularem atrás dos dois.
Mas conforme o tempo passava, algo começava a mudar.
As árvores antigas foram sumindo, substituídas por vegetação mais baixa e espaçada.
O chão, antes coberto por folhas grossas e neve rala, agora era uma estrada de pedras irregulares com musgo nas bordas.
O frio cedeu lugar a um ar seco e morno. A umidade do corpo já não evaporava com o vento.
Kael respirou fundo, sentindo o cheiro de madeira queimada, fumaça de ferro e folhas vivas.
Ele gostava disso.
Diferente. Estranho. Quente.
Vivo.
Horas se passaram.
Quando a estrada começou a se alargar, ele viu no horizonte o topo de um muro de pedra, alto e coberto por bandeiras vermelhas tremulando.
Era o Muro Dourado de Lysgard, a cidade onde ferro, ouro e espadas andavam lado a lado.
A cidade era conhecida pela beleza das armaduras forjadas ali — resistentes, mas belas como obra de arte.
Mais adiante, eles chegaram aos pés do portão principal. Um arco gigantesco de ferro e madeira, com entalhes representando batalhas antigas.
Eldar desceu do cavalo em silêncio e seguiu para uma pequena porta de ferro ao lado do portão, quase escondida por uma coluna.
Ele bateu firme.
Dois guardas surgiram do outro lado. Ambos vestiam armaduras cinza gastas pelo tempo, mas adornadas com detalhes dourados em forma de folhas.
As capas longas da mesma cor tocavam o chão, e as espadas que carregavam tinham empunhaduras douradas, refletindo a luz da manhã.
Kael observava tudo. Já havia estado ali antes, mas algo naquela armadura ainda o deixava hipnotizado.
Os guardas olharam para Eldar e sorriram.
— Eldar… já faz tempo. — disse o da esquerda, tirando o elmo. — Quem é esse rapaz?
Eldar colocou a mão firme sobre o ombro de Kael.
— Esse aqui… é o futuro líder da vila.
O outro guarda abriu um sorriso.
— Você cresceu, Kael. A última vez que te vi ainda vinha sentado no mesmo cavalo que seu pai. — Ele riu, e o outro também, assim como Eldar, com aquele riso curto e sincero de quem viveu coisa demais.
— Então você é um domador, hein? Qual é sua primeira besta?
Kael virou o rosto e assobiou curto.
Dos arbustos ao lado da estrada, surgiu o lobo. Silencioso como a neve de onde veio. Pelagem branca com cinza, olhos de gelo.
O guarda arregalou os olhos.
— Um lobo da Nevasca? Como primeira besta? Hah… não poderia esperar menos do filho de Eldar.
Kael deu um sorriso contido e olhou para o pai.
Eldar estava calado, mas o olhar dizia tudo: orgulho puro.
Ficaram ali conversando mais alguns minutos, trocando histórias. Os guardas claramente respeitavam Eldar, não apenas como guerreiro, mas como alguém que já havia feito parte de algo maior ali dentro.
Então, com uma reverência leve, Eldar se despediu dos dois e voltou ao portão principal, que já se abria devagar.
A madeira rangia, e atrás dela —
a cidade se revelava.
Casas empilhadas como pedras preciosas, bandeiras flutuando no vento, cavaleiros marchando, comércios abertos, forjas em brasa, pássaros voando, crianças correndo e o castelo ao fundo, imponente como um rei adormecido em pedra.
Tudo vivo. Tudo pulsando.
Kael ficou parado por um segundo.
O coração dele aqueceu.
Não de emoção boba. Mas de clareza.
Ele ainda conhecia muito pouco do mundo que vivia. E isso… era bom.
Montou de novo, puxou as rédeas dos dois cavalos e seguiu.
Seu pai já estava lá na frente, desaparecendo entre os arcos e a multidão.
O lobo trotava ao lado de Kael, atento a tudo.
Eles haviam chegado.
Lysgard.
Kael puxava os cavalos devagar, olhos varrendo cada canto daquela cidade viva.
Seguia Eldar por uma das vias principais de Lysgard, mas era impossível não se distrair com tudo ao redor.
Ferreiros martelando espadas, artesãos entalhando madeira, estandartes balançando com brasões desconhecidos. Crianças brincavam entre barris e barracas.
A cidade era um organismo em constante movimento.
Mas algo em especial chamou a atenção de Kael.
À sua esquerda, do outro lado da rua de pedra, havia um grande prédio com colunas negras e janelas abertas. Na entrada, uma bandeira pendurada com um símbolo dourado — um olho flamejante cruzado por três lanças.
Ali havia guardas, mas não como os da cidade. Esses vestiam couro reforçado, e alguns usavam armas incomuns: lanças curtas, manoplas de pedra, adagas curvas.
Era uma base de guilda.
Kael desacelerou por instinto, observando.
Viu um jovem passando com uma besta mágica nas costas, ao lado de uma mulher que flutuava levemente sobre o chão, o cabelo brilhando como metal fundido.
“Que tipo de gente vive aqui?”
“Que poderes eles têm?”
Antes que pudesse pensar mais, Eldar virou para trás e fez um sinal com a mão.
Kael se apressou, guiando os cavalos pelas ruas até que chegaram a uma grande estrutura feita de madeira escura e pedra firme.
Um armazém colossal, com dois andares e um telhado triangular, coberto por placas metálicas que refletiam o sol.
Várias carroças iam e vinham, puxadas por bois, cavalos e até um casal de bisões domesticados.
Homens descarregavam sacos de farinha, caixotes com maçãs e barris de água.
Outros carregavam baús fechados, cobertos por panos.
Era claramente um ponto vital da cidade.
Eldar foi recebido de imediato por um homem baixo e robusto, barba branca aparada e um colar de madeira com pequenos pingentes de pedra.
Ele vestia um colete grosso, e as mãos estavam sujas de terra e tinta de papel.
— Eldar! — disse ele, abrindo os braços. — Pensei que só viria amanhã.
— Adiantamos o passo — respondeu Eldar, firme. — A estrada estava calma.
— Sorte tua. Tivemos alguns ataques nas rotas do sul.
Eles apertaram as mãos com força.
Kael se aproximou em silêncio, mas prestando atenção em tudo.
Parecia uma conversa simples, mas havia respeito ali. Algo mais antigo que o momento.
— E esse é o menino? — perguntou o homem, olhando para Kael. — Já está com cara de quem manda nos outros.
Eldar riu leve.
— Ainda não. Mas vai.
Kael apenas assentiu com a cabeça, ainda meio sério.
O homem deu um tapinha nas costas dele.
— Bom. Bom. E o lobo? Não trouxe?
— Está ali fora, observando tudo — respondeu Kael.
— Hah. Esperto. Lobos sempre são.
— Mas vamos ao que interessa. — disse o homem, limpando a mão em um pano preso ao cinto. — Já deixei tudo separado.
Eldar ergueu uma sobrancelha.
— Está pronto?
O homem assentiu e apontou para uma carroça coberta por um pano grosso.
Kael olhou com atenção.
Ao puxarem o pano, revelaram uma carga diversa:
espadas novas com bainhas de couro cru, poções em frascos amarrados por cordas grossas, sacos de sementes resistentes ao frio, carne fresca envolta em tecido mágico para conservação, grãos, frutas secas, e acima de tudo, muitos barris e vasilhas de água pura.
— Tudo como combinado. Mais até.
— Esse ano, a colheita da cidade rendeu mais que o esperado. E as forjas mandaram essas espadas como agradecimento pela madeira que sua vila forneceu no inverno.
Eldar cruzou os braços, satisfeito.
— Isso deve aguentar até o fim da estação.
— E se precisar de mais, sabe onde me achar. A estrada é longa, mas nossa troca é forte.
— Sempre foi. — disse Eldar. — E enquanto eu estiver vivo… vai continuar sendo.
Eles se cumprimentaram de novo. Firmes. Verdadeiros.
Kael, de canto, observava tudo.
Viu o peso das palavras. O tipo de respeito que se constrói em silêncio, ao longo de anos.
Não eram apenas suprimentos.
Era aliança.
Kael voltou para os cavalos, mas antes de partir, olhou uma última vez para a base da guilda distante, o símbolo ainda dançando ao vento.
“Um dia…” — ele pensou.
“Um dia vou entrar ali.”
A luz muda.
Como se o tempo e o espaço dobrassem discretamente, o som da cidade se apaga e dá lugar ao farfalhar das folhas, ao bater de um machado na madeira e ao som abafado da respiração pesada.
O som ritmado de golpes ecoa entre as árvores.
Lucan está sem camisa, o corpo suado reluz sob a luz clara do fim da manhã. Os músculos marcados se contraem a cada golpe do machado, rachando toras com firmeza e precisão. As cicatrizes espalhadas pelas costas contam histórias silenciosas — algumas recentes, outras antigas. A respiração é controlada, o movimento constante, como parte de um ritual aprendido desde cedo.
Ao fundo, entre as árvores, uma silhueta surge — Drael, o homem invocado por Lucan, caminha com passos silenciosos. Carrega pedaços de madeira nos ombros como se fossem leves, o olhar atento varrendo a clareira com a mesma frieza de sempre. Quando se aproxima, larga calmamente os troncos no chão, pega outro machado encostado ao lado da cabana e, sem dizer nada, começa a ajudar Lucan, espelhando os movimentos dele com naturalidade.
Os dois trabalham em sincronia. Não há diálogo, mas há entendimento.
A porta da cabana range, e a avó de Lucan surge segurando uma caneca fumegante.
— Até que você cresceu, pirralho… — diz com um sorriso torto. — Aqui, pega esse café.
Lucan se vira, respira fundo e pega a caneca.
— Valeu, vó.
Ela apoia o ombro no batente da porta, olhando os dois trabalhando.
— Sua amiga tá voltando da viagem.
Lucan franze o cenho, sem esconder a surpresa.
— Mas a viagem não ia durar quatro anos? Por que ela já tá voltando?
A velha dá uma risada curta.
— Parece que ela chegou no Rank C mais rápido do que o previsto. Terminou antes do tempo, haha.
Lucan bebe o café devagar, encarando o chão por um instante.
Ela era dois anos mais velha que ele, filha de Eldar, e estava na linha de sucessão para liderar a vila.
Lucan ficou em silêncio por alguns segundos.
Terminou o café com um último gole e deixou a caneca encostada na cerca ao lado.
Drael continuava cortando a madeira, como se nada mais existisse além daquela tarefa.
Lucan passou a mão no rosto suado, pegou o machado de novo e voltou ao trabalho.
Não disse nada.
Mas o ritmo dos golpes ficou um pouco mais rápido.
Ele não tinha esquecido dela.
Só não sabia o que pensar agora que ela estava voltando.
E provavelmente… diferente de antes.
Lucan terminou de cortar o último pedaço de madeira e cravou o machado no chão ao lado.
O suor ainda escorria pelas costas, e o vapor subia da pele quente no ar frio.
Drael, ao lado, permaneceu de pé, segurando uma tora de madeira como se fosse nada.
A avó observava tudo da varanda, tomando seu próprio café em silêncio.
O cheiro do café fresco ainda pairava no ar.
Lucan limpou a testa com o antebraço e olhou pro céu nublado.
Ainda era manhã. O dia estava só começando.
Foi quando ouviu o som de passos apressados vindo do leste da vila.
Ao virar, viu Tharek, o velho caçador, andando rápido com a mão pressionando o chapéu contra a cabeça, o casaco balançando com o vento.
— Lucan! — gritou ele, ao se aproximar. — Precisamos de você ali na muralha norte. Uma parte da estrutura de suporte cedeu com o peso da neve acumulada. Tá perigoso.
Lucan soltou um suspiro leve, pegou a camisa dobrada ao lado e a vestiu rapidamente.
— Tá. Mostra o caminho.
Drael seguiu logo atrás, sem que fosse chamado.
Tharek virou e começou a caminhar apressado pela vila.
Enquanto andavam, Lucan notava o movimento tranquilo das poucas casas.
Algumas crianças corriam brincando, os adultos já cuidavam das tarefas do dia — cortando lenha, arrumando ferramentas, alimentando os animais.
A vila era pequena, mas viva.
Resistente.
Chegaram à borda norte em poucos minutos.
A muralha ali era feita de toras largas de pinheiro, amarradas e reforçadas com cordas grossas e travas de ferro. Protegia a vila de invasões diretas — principalmente de bestas de rank Madeira que se aproximavam no inverno em busca de calor.
Mas agora, um dos pilares principais estava rachado.
A base de pedra onde o tronco se encaixava havia trincado, e o peso da neve acumulada no topo começava a empurrar tudo pra frente.
Dois moradores já estavam lá tentando escorar a estrutura com tábuas e cordas, mas sem sucesso.
Lucan se aproximou, analisando com calma.
— Isso vai desabar se continuar pressionando desse jeito — disse ele.
— Acha que dá pra segurar? — perguntou um dos moradores, o ferreiro assistente, com as mãos sujas de graxa.
Lucan olhou pros lados.
— Me arranjem cordas firmes, martelo grande e estacas. Vamos travar a base primeiro. Drael, ajuda eles a limpar esse lado aqui.
Drael obedeceu sem falar nada e começou a remover a neve acumulada, limpando o espaço ao redor da base rachada.
Lucan pegou uma estaca grossa e cravou-a no chão ao lado da estrutura, batendo com força.
Depois amarrou uma corda longa entre ela e a muralha, esticando com firmeza pra servir de tração oposta.
Repetiu o processo em três lados diferentes, transformando a muralha em uma espécie de trapézio de contenção.
Quando tudo estava seguro, ele se aproximou da base com uma tora sobressalente.
Com a ajuda dos outros, empurrou a nova tora no lugar, travando por baixo.
A estrutura estalou. Trepidou.
Mas parou de ceder.
Por fim, jogaram neve por cima da base reforçada e cobriram as cordas com tecido grosso — uma proteção improvisada, mas suficiente até refazerem o suporte direito.
Tharek deu dois tapinhas nas costas de Lucan, sorrindo.
— Ainda bem que tava por perto, garoto. Isso aqui teria virado uma entrada gratuita pra qualquer bicho da floresta.
Lucan assentiu com um simples:
— Melhor prevenir agora do que enterrar depois.
Drael terminou de recolher os últimos restos de madeira quebrada e ficou em pé, como sempre fazia — observando tudo, mas sem reação aparente.
Enquanto todos voltavam devagar para suas casas, Lucan ficou mais um momento ali, olhando para a muralha reforçada.
O vento soprava forte do lado de fora.
O som das árvores altas da floresta distante parecia mais longe agora.
Ele respirou fundo.
Ainda havia muito o que fazer.
Lucan soltou o ar com força pelas narinas.
Mais uma tarefa resolvida.
Ele passou os olhos pela muralha uma última vez, então virou-se, e começou a andar de volta.
Drael o acompanhava em silêncio, como sempre.
A vila ainda estava viva com o som de tarefas simples: marteladas, vozes trocando instruções curtas, baldes de água sendo puxados de poços.
Era um ritmo conhecido. Calmo, mas firme. Cada um com sua função, sem espaço pra desperdício.
Quando chegaram perto da casa, Lucan viu sua avó dobrando um pano grosso sobre uma mesa de madeira, no lado de fora.
Ao redor dela, ferramentas organizadas: alicates, facas, martelos, pequenos frascos com runas desenhadas na tampa.
— Veio cedo — disse ela, sem tirar os olhos do que fazia.
— A muralha tava cedendo — respondeu ele, encostando o machado na parede.
— Consertaram?
— Improvisei um reforço. Vai segurar.
Ela assentiu, girando uma das lâminas sobre o pano com cuidado.
Lucan se aproximou, olhando o que ela fazia.
A lâmina estava sendo limpa com um pano embebido em alguma solução. O metal refletia o céu acinzentado com uma nitidez tremida.
— Isso é pra quem? — perguntou ele.
— Uma das facas do Ainar. Disse que queria ela afiada o suficiente pra cortar pensamento ruim — respondeu, com uma risada leve.
Lucan sorriu de lado, quase imperceptível.
Drael parou a alguns metros e ficou de pé, observando.
Ele nunca invadia os momentos — parecia entender o que era seu e o que não era.
— Pega aquele pedaço de couro, ali na cadeira — disse a avó.
Lucan obedeceu. Ajudou a cortar, ajustar, prender com as pequenas tachas.
Trabalhar ao lado dela tinha uma estranha paz.
Não era conversa. Era presença. E isso bastava.
Quando terminaram, ela se esticou na cadeira, estalando os ombros.
— Não sei por quanto tempo vou conseguir fazer isso sozinha, sabia?
Lucan não respondeu de imediato.
— Você não tá sozinha.
Ela olhou pra ele, depois pra Drael.
— É. Agora tem companhia. Mesmo que quieta.
Lucan observou a expressão dela por um momento.
Ela estava mais cansada do que costumava admitir. Mas não era fraqueza — era tempo. Era vida gasta do jeito certo.
Ele juntou as ferramentas, dobrou o pano e limpou a bancada.
Drael ficou ali perto, imóvel, mas atento.
Quando tudo estava guardado, Lucan se virou pra ele.
— Vai caçar. Um cervo.
— Um só. Traz inteiro.
Drael virou-se na hora e seguiu em direção à floresta.
Não olhou pra trás.
Não precisava.
Lucan se sentou no degrau da entrada da casa, esticando as pernas.
— Vai deixar ele caçar sozinho? — perguntou a avó, pegando a caneca de café vazia.
— Ele sabe o que faz.
Ela sumiu pra dentro da casa, deixando a porta entreaberta.
O tempo passou devagar.
O sol desceu pela metade, tingindo as árvores de dourado queimado.
O vento esfriava de novo, como fazia toda tarde.
A fumaça das chaminés subia mais densa, e os sons da vila iam diminuindo.
Lucan ainda estava ali fora, sentado sobre uma pedra próxima, com os braços apoiados nas pernas e o olhar perdido no mato.
A espada estava encostada ao lado. Não por precaução — mas por hábito.
Ele não pensava em nada específico. Mas sentia peso.
Não era o cansaço do corpo. Era o outro. O mais difícil de nomear.
Olhou pro céu parcialmente nublado, depois pra própria mão, ainda com marcas do machado.
Pensou em Drael.
Pensou na maneira como ele o obedecia. Como lutava. Como olhava.
Era lealdade.
Mas também era algo estranho.
Era como se Drael estivesse esperando.
Não por ordens.
Mas por direção.
Lucan passou a mão pelo rosto.
Voltar pra casa, ajudar a vila, treinar, proteger.
Tudo isso era certo.
Mas… até quando?
Ele ainda não sabia ao certo o que esperavam dele — ou se esperavam algo além do que ele já era.
Mas sabia que carregar peso era fácil.
Difícil era entender pra onde ele deveria levar tudo isso.
Ou por quem.
—
Ele não se levantou.
Ficou ali mais alguns minutos, ouvindo os galhos se moverem com o vento.
A floresta ainda estava viva.
Drael ainda estava longe.
E ele… ainda estava tentando entender o que, exatamente, estava construindo.
Não com ferramentas.
Mas com as próprias escolhas.
O sol já se arrastava pelas copas das árvores quando Lucan se levantou da pedra e começou a caminhar de volta para casa.
O vento frio agora batia direto na pele suada, fazendo os músculos enrijecerem levemente.
Mas ele não se incomodou. Estava acostumado.
A vila parecia mais silenciosa, embalada pelo fim do dia.
As janelas já começavam a se acender por dentro, uma a uma, com as luzes alaranjadas do fogo ou das lanternas de óleo.
As vozes diminuíam. Os sons viravam sussurros.
Quando chegou ao portão simples de madeira da casa, empurrou com o pé e entrou.
A estrutura era pequena, funcional — tudo ali tinha propósito. Nada era só enfeite.
O cheiro de couro, madeira e tempero queimado ainda pairava no ar.
Ele passou direto pelo salão central e entrou no quarto à esquerda, onde havia deixado o couro do tigre.
Sobre a mesa de canto, uma grande parte da pele branca com listras quase apagadas estava cuidadosamente dobrada.
A textura era espessa, pesada, mas ainda maleável.
Sua avó havia usado partes menores para fazer outras coisas — revestimento de botas, uma bolsa resistente, até uma faixa para prender no braço durante caçadas longas.
Mas a parte maior do couro ela deixou pra ele.
Lucan passou a mão por cima da superfície irregular.
Estava fria ao toque, mas não sem vida.
Dava pra sentir a resistência do animal ainda ali — o peso de quem já foi predador.
Ele a pegou com cuidado, enrolou devagar e guardou dentro de uma caixa de madeira debaixo da cama.
Não sabia ainda o que faria com aquilo.
Talvez um manto.
Talvez nada.
Mas por algum motivo, queria mantê-la perto.
No salão, ouviu o som de madeira rangendo e os passos firmes da avó andando com um pano no ombro.
— Trouxe um pedaço do fígado pra você deixar de ser magrelo — disse ela, com humor seco, entrando com uma tigela fumegante.
Lucan soltou um leve sorriso e se aproximou da mesa.
Sentaram juntos, como sempre.
A comida era simples — carne cortada em tiras grossas, cozida com raízes e um caldo forte que esquentava por dentro.
Comeram em silêncio, o tipo de silêncio confortável que só existe entre pessoas que não precisam provar nada uma pra outra.
No meio da refeição, a avó levantou os olhos.
— Seu invocado foi longe?
— Mandei caçar.
Ela deu um gole em uma caneca de metal e apoiou o cotovelo na mesa.
— Ele se parece com você. Não no rosto. No jeito de ficar em pé.
— Como se tivesse algo pesando nas costas, mesmo quando não tem nada ali.
Lucan não respondeu. Apenas mordeu mais um pedaço de carne e continuou mastigando devagar.
Depois que terminaram, ele limpou os pratos, lavou com água fria no balde perto da pia e guardou tudo no lugar certo.
Antes de subir pro quarto, parou na porta.
— Boa noite, vó.
Ela levantou os olhos do bordado que costurava.
— Boa noite, pirralho.
Ele subiu os poucos degraus de madeira que levavam ao andar de cima, onde havia apenas um pequeno corredor e seu quarto.
Entrou, acendeu a lanterna de óleo, e tirou a camisa suada do corpo.
Dobrou com precisão e jogou no cesto ao lado.
Se aproximou da janela, abriu com um empurrão curto e apoiou os antebraços no parapeito.
A brisa gelada entrou, bagunçando os fios longos e escuros do seu cabelo.
A floresta lá fora parecia quieta, mas Lucan sabia: estava sempre observando.
Do alto, era possível ver uma parte do muro que ele tinha ajudado a reforçar mais cedo.
Ainda estava de pé.
Ainda resistia.
Ele não disse nada.
Apenas olhou.
Pensando em tudo, e também em nada.
O sol mal tinha atravessado a copa das árvores quando Lucan empurrou a porta de casa.
A brisa da manhã bateu direto no rosto, cortando o leve calor que ainda restava no corpo.
Ele estava vestido com a roupa de sempre — calça escura de tecido grosso, camisa de linho ajustada nos punhos e uma faixa na cintura onde prendia a pequena adaga que sempre levava consigo.
Ao sair para o lado da casa, a primeira coisa que viu foi Drael, surgindo na trilha que levava até a floresta.
Ele caminhava com o mesmo ritmo silencioso de sempre, mas algo estava diferente.
Sobre um dos ombros, trazia o corpo de um cervo imenso — pelo escuro com tons de cinza, chifres longos e curvados, musculatura densa.
A garganta ainda pingava sangue fresco. Os olhos estavam abertos, fixos no nada.
Lucan estreitou os olhos, reconhecendo o tipo de animal.
— Um Cervo-Rei…? — murmurou, impressionado.
Depois, cruzou os braços e disse com a voz levemente irônica:
— Por isso demorou tanto, hein?
Drael se aproximou mais, e só então Lucan notou.
Seu braço direito estava faltando.
Ou pelo menos… tinha estado.
Enquanto ele andava, chamas negras serpenteavam o ombro amputado, e aos poucos, a carne, os tendões e o osso se regeneravam no ar — como se o próprio tempo estivesse voltando.
Em questão de segundos, o braço reapareceu por completo.
A pele voltou. A cicatriz desapareceu.
Tudo em silêncio.
A interface do sistema apareceu diante de Lucan:
[Regeneração automática iniciada.]
– 2 Mana consumida.
– 13/15 restantes.
Lucan apenas assentiu.
Estava começando a entender como as coisas funcionavam com Drael.
Mesmo quebrado, ele voltava. Sempre.
Drael entrou pela lateral da casa, indo guardar o cervo em um dos espaços reservados para abate e preparação.
Lucan ficou parado ali por um instante, olhando para o chão marcado pelas pegadas largas do animal.
Foi quando ouviu o som de vozes ao fundo da vila.
Mais pessoas do que o comum se reuniam próximo à entrada principal — risadas, cochichos, movimento.
Ele se virou para olhar.
Viu alguns moradores largando ferramentas, crianças correndo, e dois garotos passando apressados na sua frente, quase esbarrando nele.
— O Eldar tá chegando! — gritou um deles. — E a filha dele voltou com ele!
Lucan parou o que estava fazendo.
A corda que usava para amarrar as ferramentas caiu da mão sem que ele percebesse.
Por um segundo, ficou ali parado.
Então começou a andar.
Cada passo era direto, sem pressa, mas firme.
Cruzou a vila em silêncio, passando pelos moradores reunidos, que se afastavam respeitosamente quando ele se aproximava.
Quando chegou na borda da praça central, viu os portões abertos.
E lá estavam eles.
Eldar, montado em seu velho cavalo escuro, a postura ainda ereta como sempre, apesar dos anos e da cicatriz visível na perna.
Ao lado dele… ela.
Ela tinha a aparência de uma tempestade contida.
Seus olhos dourados brilhavam com uma intensidade afiada — como se carregassem uma história que ninguém ali era capaz de entender completamente.
Piercings no lábio inferior e na sobrancelha esquerda acentuavam sua presença — não gritavam por atenção, apenas deixavam claro que ignorar ela não era uma opção.
Os cabelos negros caíam longos em dreads firmes, misturados com mechas vermelhas profundas, cada um adornado com anéis dourados — como marcas de batalhas vencidas e territórios já superados.
O top preto justo deixava clara a definição do corpo — ombros fortes, coluna reta, presença inabalável.
Pelas tatuagens que cobriam os braços e o tronco — dragões, flores, símbolos tribais — dava pra sentir que ela não carregava só a própria história… mas também a de todos que vieram antes.
Ela cruzava os braços enquanto ouvia algo do pai.
Mas o olhar estava virado para o lado.
Como se algo distante a chamasse mais atenção do que tudo aquilo à sua frente.
Lucan a viu e não disse nada por um momento.
Só observou.
Depois de alguns segundos…
— Kalyne.
E foi tudo que ele disse.
FINALIZAÇÃO
Opa, tudo bom? deixe a sua review aqui nos comentarios, sabia que isso me motiva a escrever cada vez mais? hehe. Quer dar um help pro escritor iniciante aqui? só ajudar no Pix! davisantos857620@gmail.com Obrigado por ter lido.