Sob a Neve, os Mortos Andam - Capítulo 3
A trilha que Lucan seguia pela floresta era íngreme e coberta por folhas úmidas e raízes torcidas. O ar era fresco, cheirando a terra viva, e o sol filtrava entre as copas altas em feixes quebrados. Subia em silêncio, os olhos atentos, passos leves, o corpo já acostumado a se mover ali.
O invocado seguia logo atrás.
Sem ruído, sem fôlego.
Como se fosse parte da própria floresta.
A katana presa na cintura balançava com precisão medida — nunca demais.
Seus movimentos eram quase fantasmas, cada pisada no chão parecia estudada.
Ambos caminhavam sem trocar palavras — e nem precisavam.
A conexão entre eles começava a se formar no espaço não dito, no ritmo igual dos passos, na forma como ambos paravam ao mesmo tempo, observando os mesmos detalhes do caminho.
O tempo passou sem que Lucan contasse.
Talvez cinco horas ou mais já tivessem ido embora com o vento.
O sol agora escorria entre as folhas num ângulo mais baixo, banhando o chão com um dourado mais quente.
Lucan estava agachado atrás de uma moita, a pele grudando na roupa úmida, o olhar firme.
Ao longe, em cima de um galho grosso, o invocado observava a área com atenção.
Lucan levou os dedos à boca e emitiu um som suave, agudo e breve.
Parecia quase um lamento — o chamado de uma cerva fêmea.
Estavam na época de acasalamento.
Ele sabia.
Era a época em que os machos se tornavam descuidados, guiados por instinto mais do que cautela.
E Lucan, que cresceu caçando e observando a vida na floresta, sabia exatamente como soar convincente.
Dois a três minutos se passavam entre cada chamada.
O som ecoava, se perdia entre as árvores, e então o silêncio voltava — completo, quebrado só por algum galho distante ou o farfalhar de folhas.
Passaram-se cerca de trinta minutos nesse padrão.
Foi então que Lucan viu.
Um cervo macho, grande, com galhadas imponentes, surgiu entre os arbustos ao longe.
Lucan afundou mais no mato, mal respirando, os olhos semicerrados.
Esperou.
E então, emitiu um novo som — mais baixo, mais doce.
Um tom que só quem já viu de perto o ritual de cortejo das cervas saberia imitar.
Era um convite silencioso, uma melodia de aceitação.
O cervo respondeu exatamente como esperado.
Se aproximou.
Pisava com cautela, mas estava entregue.
Guiado pelo desejo.
Passou bem perto da árvore onde o invocado esperava.
E foi ali que tudo aconteceu.
Um som cortante.
O invocado saltou do galho alto, corpo inclinado pra frente, como um predador mergulhando.
A katana saiu da cintura numa fração de segundo.
Antes mesmo dos cascos do cervo reagirem, a lâmina cortou o ar e o silêncio.
O animal caiu antes de entender o que havia acontecido.
O som da fogueira crepitando preenchia o espaço.
A luz alaranjada dançava entre as árvores e pintava os rostos de forma irregular.
Lucan estava sentado num tronco tombado, mastigando um pedaço suculento de carne assada, que ainda soltava vapor no ar gelado da manhã.
Outro pedaço girava em cima de uma fogueira improvisada, cravado num galho fincado em diagonal.
O cheiro era bom.
Simples, real.
A poucos metros dali, num ponto mais elevado do terreno, o invocado observava a floresta.
Sentado, espada encostada ao lado, postura alerta — mas calma.
Alguns minutos se passaram.
Lucan se agachou ao lado da fogueira, usando um punhado de neve para abafar as brasas ainda vivas.
O chiado do gelo encontrando o calor preencheu o ar por alguns segundos.
Ele apagava cada traço da presença deles ali. Nenhum cheiro, nenhum brilho.
O cervo abatido estava a poucos metros dali, parcialmente coberto de neve.
Lucan se aproximou com calma, retirando uma pequena lâmina de osso da bolsa.
Ajoelhou ao lado do corpo já enrijecido e começou a trabalhar com precisão.
Removeu os ossos das quatro pernas, ainda limpos pela temperatura fria, e os envolveu num pano antes de guardar na bolsa de couro.
O restante do animal foi erguido com esforço — o peso fazia os músculos dos braços dele se tensionarem sob as mangas da camisa.
Ele se virou em direção ao invocado.
O espadachim o observava de onde estava, imóvel.
Lucan se aproximou, entregou o corpo do cervo, que o invocado pegou sem hesitar, apoiando sobre um dos ombros.
— Está preparado para caçar o grandão? — perguntou Lucan, com um sorriso sutil no canto da boca.
O espadachim não respondeu.
Mas seus olhos brilhavam por baixo da sombra do chapéu.
Lucan então se virou e continuou a subida pela encosta da montanha.
O caminho era mais estreito agora.
O solo mudava: rochas começavam a dominar a paisagem, e o musgo que antes cobria tudo agora só aparecia em manchas esparsas.
As árvores iam se tornando menores, mais retorcidas. Algumas cresciam tortas pelo vento constante, outras eram reduzidas a arbustos curvados pelo frio.
Lucan andava em silêncio, os olhos varrendo tudo.
Notou a mudança na vegetação — onde antes haviam pinheiros robustos, agora só restavam troncos baixos, tortos, cobertos de gelo nas bordas.
As folhas também eram diferentes, menos densas, mais duras.
A variedade de plantas diminuía à medida que subiam.
Além disso, o frio começava a morder com mais intensidade.
Não era o mesmo frio da floresta baixa.
Era mais constante, seco, profundo, o tipo de frio que se acumula nas roupas e penetra na pele mesmo com o corpo em movimento.
Ele olhou para os próprios dedos. A ponta das luvas estava úmida, e já começava a endurecer.
Soltou um suspiro leve, observando o vapor quente da respiração dançar no ar rarefeito.
Depois de mais alguns minutos, Lucan parou.
Estendeu o braço para trás como sinal de alerta.
O invocado parou também.
Lucan analisou o terreno ao redor. O caminho havia ficado mais íngreme, e as árvores maiores já haviam desaparecido completamente.
O solo era coberto por pedregulhos irregulares e galhos retorcidos.
“A vegetação mudou. O clima também. Estamos no lugar certo.”
Ele se virou para o invocado e falou, em voz baixa:
— Chegamos.
Agora… é só fazer a armadilha.
E esperar o dono desse pedaço aparecer.
Lucan tirou a bolsa de couro das costas e se ajoelhou.
Começou a montar tudo com calma.
Usou dois ossos longos do cervo como base. Fincou ambos no chão, um de cada lado.
Cortou o couro do animal em tiras e amarrou as pontas com firmeza, criando uma pequena estrutura no centro, onde pendurou o pedaço de carne mais fresco.
Era o suficiente.
Sangue escorrendo devagar.
Cheiro forte.
Atrativo o bastante para uma besta de rank Pedra sentir o chamado.
O espadachim se posicionou mais adiante, a poucos metros do ponto central.
Ficou de pé, atrás de um conjunto de arbustos secos, com a katana repousando ao lado da perna.
Lucan recuou em silêncio e subiu numa elevação próxima.
Se escondeu atrás de uma árvore partida, onde o tronco formava uma cobertura natural.
O vento estava estável.
O som da floresta, baixo.
Nenhuma ave. Nenhuma folha agitada demais.
O tipo de silêncio que precede movimento.
Lucan esperou.
Respirava devagar.
E manteve os olhos no centro da armadilha.
Lucan ficou esperando por uma hora.
A floresta permanecia quieta.
Nem o som de folhas. Nem o de galhos quebrando ao longe.
Só o gotejar das gotas penduradas nas pontas das folhas.
Até que a chuva veio.
Fraca, mas constante.
Uma cortina fina de água começou a cair entre as árvores, escurecendo o solo, deixando tudo mais pesado, mais frio.
Lucan ia sair de trás da árvore para procurar outro ponto de visão…
Mas parou.
Ouviu pegadas.
Pesadas.
Cada uma soava como um aviso.
Ele prendeu a respiração e se encolheu mais, a mão escorregando para o punho da espada.
Na névoa formada pela chuva, uma silhueta apareceu.
Grande. Lenta. Letal.
Um tigre branco.
A pelagem quase prateada reluzia sob a luz quebrada do céu nublado.
Listras escuras, menos definidas, cobriam o corpo musculoso.
Com a chuva, os pelos se colavam à pele, e os músculos do animal pareciam ainda mais visíveis, ondulando a cada passo como molas prontas para estourar.
Os olhos brilhavam com uma fúria antiga.
Os dentes estavam à mostra — não num rugido, mas numa promessa silenciosa de morte.
Lucan não se moveu.
O tigre abaixou a cabeça e foi direto até a armadilha.
Começou a cheirar a carne pendurada.
Testava. Provava o ar.
Sentia que algo estava errado…
Mas ainda não sabia o quê.
Lucan se levantou com calma.
— Agora! — gritou.
O espadachim saltou do mato como um raio.
A katana saiu da cintura num único movimento.
A lâmina ficou negra como carvão, coberta por uma energia que pulsava, densa e viva.
O invocado fez um corte no ar — o traço negro se desprendeu da katana, como uma lâmina feita de sombra, e voou em linha reta.
O golpe acertou o pescoço do tigre.
Quase arrancou a cabeça.
Mas o monstro girou no último segundo.
Perdeu uma pata dianteira.
E rugiu. Forte. Violento.
O tigre avançou com fúria.
Deu um salto curto e atacou o espadachim com uma patada devastadora, as garras expandidas como ganchos.
O invocado desviou, se curvando e usando a própria katana como impulso.
Quase caiu, mas recuperou o equilíbrio.
Lucan já estava com a espada em mãos.
— Continue.
O espadachim avançou sem hesitar.
O tigre atacou de novo.
O invocado tentou saltar por cima, mas dessa vez o tigre foi mais rápido.
Cravou as garras e arrancou a perna esquerda do espadachim no ar.
Mesmo assim, o invocado caiu em cima do tigre.
Com uma mão, cravou a katana nas costas do monstro.
O grito do tigre cortou a floresta.
Ele começou a correr descontrolado, se debatendo entre as árvores, tentando se livrar da dor.
Lucan correu atrás, mas não conseguiu acompanhar.
O chão era instável demais, e o risco era alto.
O tigre se jogou de costas no chão, esmagando o invocado com o peso.
A katana ficou cravada nas costas da besta, vibrando com a pancada.
O tigre se virou com raiva.
Avançou com as presas abertas e rasgou metade do corpo do invocado com um golpe só.
Ainda não era o fim.
Lucan apareceu por trás e, com um giro rápido, arrancou a pata traseira direita do tigre com um corte seco.
O monstro urrou de dor e girou pra atacar Lucan.
Lucan recuou.
O tigre veio correndo, mesmo mancando.
Saltou.
Lucan usou a espada pra bloquear a investida e, com o impacto, se impulsionou para o lado, desviando.
Correu direto até a armadilha.
Chegando lá, puxou um dos ossos fincados no chão.
Estava coberto de sangue seco. Pesado. Rígido.
Virou-se.
O tigre pulava de novo.
Última chance.
Lucan lançou o osso com toda força direto na cara do monstro.
O impacto foi seco. Direto.
O osso atingiu a cabeça do tigre em cheio.
O monstro caiu com um baque surdo no chão.
Quase morto.
Mas ainda respirando.
Lucan ficou parado.
A espada na mão.
O coração batendo forte no peito.
A chuva seguia caindo.
Agora, só se ouvia o som dela.
E o da besta… tentando respirar.
Lucan se aproximou devagar.
O tigre ainda respirava, mas mal conseguia mover a cabeça.
Os olhos, antes selvagens, agora estavam baços. Derrotados.
Lucan ergueu a espada com uma mão só.
Num único golpe, arrancou a cabeça da besta.
O corpo tremeu por alguns segundos e depois, finalmente, parou.
Lucan puxou a katana cravada nas costas do tigre.
O sangue escorreu quente pelo aço escuro.
Ele a girou na mão com cuidado e a prendeu na cintura do dono.
O espadachim ainda jazia ali, quase partido ao meio.
Foi quando a tela do sistema apareceu:
[Besta de Rank Pedra eliminada]
Ganhos para Lucan:
+2 Vitalidade
+1 Força
+3 Destreza
Ganhos para Invocado:
+1 Magia
+1 Vitalidade
Lucan estreitou os olhos, confuso.
— Invocado…? — murmurou. — Ele não… morreu?
Uma nova tela se abriu, fria e direta:
[Traço Único Ativado]
Devido ao seu traço exclusivo, todos os seres invocados permanecem imortais enquanto houver mana disponível.
Ferimentos fatais podem ser revertidos com o uso automático de mana.
Iniciando regeneração automática…
Custo: 5 mana
Mana atual: 10 de 15
Lucan virou lentamente para o corpo caído do espadachim.
Ficou em silêncio.
Chamas negras começaram a se formar ao redor das partes destruídas.
As pernas arrancadas, o peito rasgado… tudo foi sendo reconstruído.
O tecido da roupa, a carne, os ossos…
Como se o tempo voltasse só pra ele.
O corpo se regenerava com perfeição, mas sem pressa.
As chamas consumiam o que restava das feridas e deixavam algo novo no lugar.
Quando tudo terminou, o espadachim se levantou.
A katana já na cintura.
O chapéu ainda cobrindo parte do rosto.
Ele se ajoelhou.
Devagar.
Calado.
Firme.
Lucan ficou ali.
O sangue ainda escorrendo da lâmina em sua mão.
Olhou pro invocado.
Olhou pra tela do sistema.
E então…
Sorriu.
Um sorriso pequeno.
Sincero.
Um sorriso que ele não dava há muito tempo.
Misturado com alívio.
Com empolgação.
Com aquela fagulha de quem começa a entender que agora, finalmente, pode lutar de verdade.
Lucan descia a montanha em silêncio.
Na mão direita, carregava a cabeça do tigre, envolta por um pano grosso e úmido de sangue já escurecido.
A neve cedia sob seus pés, e o ar frio parecia mais leve agora.
Havia peso nos braços, mas não no peito.
Atrás dele, em passos firmes e silenciosos, seguia seu invocado.
Agora com um nome.
Drael.
Lucan escolheu esse nome por instinto.
Não por significado — mas por sensação.
Soava como uma lâmina que já teve dono.
Como algo quebrado que voltou inteiro.
Frio, direto e limpo.
Drael se movia como o nome pedia: sem pressa, sem som, sem dúvida.
══════════════ 𝕾 ⚔ 𝕾 ════════════════════════════ 𝕾 ⚔ 𝕾
Kael estava parado no meio da floresta.
Arco em mãos.
Respiração controlada.
Olhos atentos.
O som veio primeiro. Um estrondo abafado. Depois, mais perto.
O lobo branco surgiu correndo entre as árvores, com os pelos molhados de orvalho e os olhos em alerta.
Atrás dele, uma manada de javalis surgia, selvagens e barulhentos, quebrando galhos e rasgando a vegetação enquanto avançavam.
Kael deu um passo pro lado, ergueu o arco com firmeza e disparou duas flechas seguidas.
Ambas certeiras. Dois javalis caíram antes mesmo de perceberem que estavam sendo caçados.
O lobo parou, girou o corpo e uivou com força.
O som atravessou a floresta.
Os javalis hesitaram… e então fugiram, voltando por onde vieram.
Kael abaixou o arco.
O lobo se aproximou, ofegante, mas firme.
Kael passou a mão entre as orelhas da criatura.
— Bom trabalho.
Agora vai pegar aquelas duas carcaças.
Vamos voltar ao lago.
O lobo não hesitou. Virou-se e correu de volta entre as árvores.
Kael se virou, assoviou.
Alguns segundos depois, o cavalo apareceu, trotando entre os arbustos, imponente e acostumado à rotina.
Kael montou sem dizer nada e puxou as rédeas.
Cavalgaram rápido.
O lobo logo reapareceu com uma carcaça em cada lado da boca, equilibrando o peso com facilidade.
A estrada era estreita, mas aberta.
À direita, um lago enorme se estendia até onde a vista alcançava, calmo, refletindo o céu nublado.
Kael fez o cavalo desacelerar.
Mais à frente, viu o pai — Eldar — sentado ao lado da estrada, curvado sobre uma fogueira recém-preparada.
Kael desmontou.
— Pai, consegui a comida.
Eldar ergueu os olhos, observou o filho, depois o lobo, e apenas disse:
— Parabéns.
Era o suficiente.
Seu tom era seco, mas havia orgulho ali, escondido na firmeza das palavras.
A noite caiu devagar.
A fogueira estalava ao lado da estrada.
Kael comia em silêncio ao lado do pai.
Os cavalos descansavam deitados sobre a relva seca, e o lobo estava deitado com a cabeça erguida, observando a escuridão.
Sempre alerta.
A manhã chegou com neblina baixa e vento gelado.
Kael sentiu uma mão no ombro.
Abriu os olhos devagar, ainda com o rosto meio colado ao próprio braço.
— Garoto… vamos. Estamos quase chegando à cidade.
A voz de Eldar era baixa, mas firme.
Kael se levantou, esfregou os olhos, e caminhou até o lago.
Molhou o rosto, respirou fundo.
Depois montou no cavalo.
Sem dizer nada, os dois partiram.
Kael, seu lobo, e Eldar desapareceram pela estrada, engolidos pela neblina da manhã.
FINALIZAÇÃO
Opa, tudo bom? deixe a sua review aqui nos comentarios, sabia que isso me motiva a escrever cada vez mais? hehe. Quer dar um help pro escritor iniciante aqui? só ajudar no Pix! davisantos857620@gmail.com Obrigado por ter lido.
Ainda não entendi direito se ele só consegue invocar uma nova criatura por semana ou se as criaturas só duram uma semana